Entre o humanismo e o saber
A história da capital e da Universidade de Brasília (UnB) se en trelaçam. Brasília tinha apenas dois anos de existência quando a instituição de ensino superior foi fundada, em 21 de abril de 1962. A construção da universidade foi norteada pelas ideias do antropólogo Darcy Ribeiro, pelo modelo pedagógico do educador Anísio Teixeira e pelos traços do arquiteto Oscar Niemeyer. “Eram mais de 200 sábios e aprendizes, selecionados por seu talento para plantar aqui a sabedoria humana”, escreveu Darcy Ribeiro, na publicação A inven- ção da Universidade de Brasília, em 1995. Com 61 anos de história, a UnB contribui para que Brasília seja um celeiro da ciência e do saber.
Para a professora Viviane Rezende, do Instituto de Letras, a Universidade de Brasília é uma potência muito particular. “A comunidade acadêmica pulsa diversidade. Na UnB encontrei um ambiente muito especial no meu campo de estudos, ligado à aná- lise do discurso, e a nossa universidade é reconhecida como um dos principais centros de estudos críticos do discurso do país. Foi uma professora da UnB, Isabel Magalhães, a primeira a publicar sobre análise crítica de discurso no Brasil. Ela foi minha professora e sigo no esforço de formar outras gerações nessa linha de estudo”, conta a docente.
Viviane nasceu em Brasília, foi para Minas Gerais estudar na Universidade Federal de Viçosa e voltou à capital depois de sete anos. Segundo a professora, Brasília é uma cidade de vanguarda. A docente é coordenadora do Caleidoscópio — Instituto de Estudos Avan- çados em Iniquidades, Desigualdades e Violências de Gênero e Sexualidade e suas Múltiplas Insurgências, que é uma rede de pesquisa, com 24 instituições, que estuda gênero e sexualidade em uma perspectiva feminista, decolonial e antirracista. “Além de incubadoras sociais, teremos observató- rios para mapear as violências e como as universidades atuam para combatê -las no ambiente acadêmico”, pontua. Viviane sabia que queria seguir carreira acadêmica desde a graduação e se envolveu em vários projetos de iniciação científica, no início da trajetó- ria na universidade. “Vim estudar na UnB na pós-graduação. Eu encontrei na Universidade de Brasília um ambiente muito profícuo para desenvolver as habilidades de pesquisa e encontrar pessoas com essa mesma busca”, diz a docente. Ainda de acordo com ela, a UnB se destaca no cená- rio de enfrentamento das desigualdades no acesso das mulheres à ciência.
Do sonho de JK
Brasiliense de coração, a professora de engenharia eletrônica Suélia Rodrigues Fleury nasceu em Goiânia e está na capital desde 2005. “Vir para o Planalto Central, como Juscelino Kubitschek fez, romper todas as barreiras e perceber o que ninguém tinha percebido, é o que a ciência faz. Nós, cientistas, vemos onde ninguém vê, quebramos as barreiras. O sentimento de JK é o mesmo que os cientistas carregam, que é o de transformar. E Brasília me dá esse sentimento”, declara Suélia. A docente coordenou o projeto de cria- ção da máscara Vesta, que utiliza nanotecnologia para inativar o vírus SARSCoV-2, causador da covid-19.
A barreira química do respirador facial desenvolvido na UnB é feita de quitosana, uma macromolécula extraída da carapaça de crustáceos, como o camarão e a lagosta. O projeto foi aprovado e registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Além dessa iniciativa científica, a professora Suélia, que é premiada nacional e internacionalmente, está à frente do projeto Rapha, que foca no tratamento de feridas de pessoas diabéticas. “O produto (que estudamos) cicatriza feridas utilizando uma lâ- mina de látex derivada da seringueira Hevea Brasiliens, um ecoproduto, que exige um plantio de árvores na política de ciência ecológica”, explica a docente. O projeto se desdobrou na pesquisa Organs-on-a-chip (órgãos em um chip), que visa a redução do uso de animais em laboratórios. Para Suélia, Brasília é um ambiente pulsante na ciência.
A UnB também é presente no cená- rio de pesquisas espaciais. O professor Renato Alves Borges, do departamento de engenharia elétrica, chegou a Brasília em 2011 para dar aulas na UnB e foi responsável pelo primeiro nanossatélite da capital, lançado para a órbita da Terra em 2022. O objeto espacial tem apenas 10cm de aresta e pesa cerca de 1kg. O projeto científico é denominado AlfaCrux e neste mês faz um ano que o pequeno saté- lite está em órbita. “É um processo de
expansão do conhecimento e da nossa capacidade de sentir o universo, de entender onde estamos inseridos como planeta. A UnB tem papel de destaque, ela faz parte do pioneirismo dos estudos de missões espaciais, em especial as missões de pequeno porte, e também do estudo de veículos lan- çadores. Certamente, a UnB está muito bem posicionada”, comenta Renato acerca das pesquisas com nanossaté- lites e foguetes.
Já a professora Maria Emília Walter, decana de pesquisa e inovação da UnB, ressalta que o potencial cientí- fico da capital se reflete em todo o Distrito Federal. A relação da docente com Brasília passa pela vinda dos pais dela para cá, em 1958. “Nasci fora de Brasília, mas vim com duas semanas para cá, sou mais velha que a capital. Cresci aqui, meu pai era um professor da universidade e também engenheiro, então atuou em muitas obras na cidade, em particular na UnB. Estudei na Universidade de Brasília, fui aluna de graduação, depois de mestrado e fui fazer doutorado fora, porque, à época, não tinha a especialização em computação. Depois ajudei a criar o nosso doutorado. Meus filhos todos nasceram aqui. Brasília é uma cidade diferente das demais. Assim como meus pais, me sinto parte da constru- ção da capital”, relata Maria Emília.
Saga na Antártica
Desde criança, o professor Paulo Câmara, do Instituto de Ciências Biológicas, é fascinado por regiões polares e pela ciência de modo geral. Em 2013, ele começou pesquisas na Antártica — um ano após o incêndio que destruiu as instalações da base brasileira Estação Comandante Ferraz. Segundo o docente, a UnB foi a primeira universidade, fora do eixo Sudeste-Sul, que passou a ter projeto no continente gelado — o que mostra como Brasí- lia é um expoente na ciência. “A UnB está há 10 anos na Antártica e é a única universidade que estuda a vegeta- ção do continente. Nós não costumamos pensar que a Antártica tem plantas, mas tem. Eram 111 espécies e hoje são 116, descobrimos algumas por meio desse projeto com a UnB”, ressalta o professor.
Em 14 milhões de km², a Antártica abriga a maior reserva de água doce do mundo. “São 10% do planeta com as maiores riquezas, além de todo o potencial biotecnológico, de novos fármacos. É uma área que não tem dono, pois é regida por um tratado próprio. Dos mais de 193 países reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), só 53 assinaram esse tratado, e desses, apenas 29 têm direito a voz, voto e veto nas decisões, e o Brasil é um deles. O que nos dá esse direito é fato de fazermos pesquisa científica, por isso as pesquisas nunca pararam, mesmo após o incêndio de 2012. Continuamos a bordo de navios, em esta- ções de países amigos”, destaca Paulo.
O professor explica que a relevância das pesquisas da UnB na Antártica passam pelo fato de que os regimes de chuvas e pesca do país são afetados pelo continente gelado. “Se tiver derretimento de gelo, vai chegar primeiro no Brasil do que nos Estados Unidos, por exemplo. O país é o sétimo mais próximo à Antártica”, pontua Paulo. As pesquisas desenvolvidas lá fazem parte do Programa Antártico Brasileiro, que já dura 42 anos — o mais longevo projeto científico do Brasil. Segundo Paulo Câmara, que nasceu, se formou e construiu família em Brasília, os últimos 10 anos do Programa Antártico não podem ser entendidos sem contar a história da UnB, principalmente pelo desenvolvimento de uma linha de pesquisa única no continente gelado: a botânica. “A Antártica não é vista nos livros de escola, não cai no Enem. E o país tem um vínculo forte com o clima do continente. A UnB tem feito um trabalho muito bom em explicar isso”, relata Paulo.