A legalização do aborto é uma questão constitucional e democrática
Entrevista com Maria José Rosado Nunes
Nesta quinta-feira, 28/09, é o Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do aborto na América Latina e Caribe. Em toda as regiões do Brasil, hoje, pessoas que lutam por justiça reprodutiva vão às ruas se manifestarem contra a criminalização de mulheres, meninas e pessoas que gestam que recorrem ao aborto.
O momento é histórico para o Brasil, já que após votação favorável da ministra Rosa Weber na questão da ADPF 442, cresce a esperança da descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação.
Maria José Rosado. Foto: Divulgação
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Confira a entrevista:
Karla Bessa: Temos neste momento no Brasil um acontecimento histórico fenomenal, que é a Ministra Rosa Weber apresentando para que seja votado a questão da discriminarização do aborto no Supremo Tribunal Federal. Então, ela está prestes a se aposentar, coloca em votação e faz o seu voto na última sexta-feira (22/09) a favor de que o aborto seja descriminalizado até a 12ª semana de gestação. Quer dizer, não é só descriminalizar, é toda uma nova política em relação aos direitos reprodutivos. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre como está vendo esse novo cenário.
Maria José Rosado Nunes: Debater sobre essa temática não no campo ideológico, mas no campo daquilo que a ciência nos oferece, nos permite afirmar que a legalidade do aborto é uma questão de saúde pública por conta do alto número de mulheres que morrem pela ilegalidade. Também daquelas que sofreram sequelas e muitas vezes nem podem mais realizar os seus sonhos de maternidade. Então, por um lado nós temos isso e, por outro lado, nós temos a necessidade daquilo que nós temos falado sempre que é a discriminalização social do aborto, ou seja, que o tema deixe de ser tabu, porque ele é uma realidade da vida das mulheres brasileiras. As mulheres abortam. Segundo a última pesquisa de 2021, uma em cada sete mulheres na idade reprodutiva no Brasil praticaram aborto. Então, é de fato uma questão de saúde pública, mas é também uma questão social, porque a ilegalidade atinge as mulheres mais vulneráveis: as indígenas, as mulheres negras, as periféricas que não têm acesso a clínicas que são caríssimas para serem seguras. E, então, vão se aventurar nas possibilidades que encontram da insegurança e da falta de atendimento. Além de ser uma questão social, é também uma questão racial, porque as mulheres que conseguem ter acesso a uma clínica em boas condições na sua maioria são as mulheres brancas. A desigualdade é estrutural do nosso país, então, é também uma questão ética, porque ter um aborto é um direito. Além disso, é reconhecer uma coisa fundamental: a capacidade ética das mulheres de tomarem decisões sobre a sua própria vida. Na verdade, sobre a sua própria vida e sobre a vida das suas famílias, porque na maioria do casos essas mulheres já são mães quando buscam um aborto. É uma questão que inclui também uma questão constitucional, de Direito Constitucional. A ministra Rosa Weber fala nisso, né? Quer dizer, a Constituição prevê que tanto as cidadãs, como os cidadãos tenham direito a uma vida digna, a uma vida plena. E essa vida plena para as mulheres e as pessoas que gestam inclui a possibilidade da interrupção de uma gravidez indesejada. Também é preciso reconhecer que a legalização do aborto é uma questão da sociedade brasileira, não apenas uma questão das mulheres e das pessoas que gestam. Sabemos que uma das causas de mortalidade materna é exatamente o recurso ao aborto inseguro pela sua ilegalidade.
Professora Karla Bessa e Maria Maria José Rosado Nunes durante entrevista
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O momento atual é histórico para nós, porque a ministra Rosa Weber, numa atitude extremamente corajosa, audaciosa, antes de sair do cargo que ela tem no STF, decidiu deixar o seu voto, colocar em discussão a votação e a questão da possibilidade do reconhecimento de que o aborto é, na verdade, uma questão constitucional e de democracia.
Nós temos um debate na sociedade brasileira sobre essa questão como nunca tivemos antes, eu estou nessa luta há mais de 30 anos e nunca vi a sociedade brasileira tão mobilizada, no sentido de discutir, e numa perspectiva de possibilidade de fato se mude, se discriminalize o aborto, se retire do Código Penal. É muito importante lembrar que o que se tem hoje não é unicamente a ilegalidade, mas é criminalização. Mulheres são consideradas criminosas quando recorrem ao aborto. Então, descriminalizar é retirá-lo do Código Penal, para que ele deixe de ser considerado um crime. Para que passe a ser considerado e tratado como um direito das mulheres, que deve ser considerado pelo governo, pelo Estado brasileiro como uma questão de política pública. Para que se possa acionar os equipamentos do Estado, para que as mulheres possam recorrer de forma livre, segura e gratuita a um aborto.
Karla Bessa: Esse é um momento especialíssimo que a gente está vivendo. Eu tô vendo isso com certo otimismo, pelo menos na minha existência, é a primeira vez que eu vejo o debate acontecendo no Brasil com tanta força nas mídias. Você considera que as principais questões que emergem das pessoas que são contra descriminalização do aborto tem a ver com religião? Quais são as questões que estão vindo à tona trazidas pelas pessoas que são contra a descriminalização do aborto?
Maria José Rosado Nunes: Acho que há duas questões, uma é que a sociedade brasileira é uma sociedade conservadora, né? Haja vista as últimas eleições do Congresso Nacional. Nós temos uma Câmara e um Senado que são compostos por uma absoluta maioria conservadora de direita e de extrema direita. No caso do aborto sempre se teve uma polarização muito forte: entre quem é contrário aos direitos e se diz pela vida, e quem é efetivamente pela vida e é favorável aos direitos.
Nas sociedades colonizadas pelo cristianismo, a maternidade também tem um tratamento mítico. E o aborto é tratado como um tabu, como algo que se deve absolutamente evitar, como um mal e mitifica a maternidade. Eu acho que é sempre muito importante a gente pensar nisso. A anos atrás, escrevi um artigo em que eu falava que para falar de aborto é necessário falar de maternidade, porque só é possível pensar na possibilidade de que o aborto seja livre, um recurso livre para as mulheres, se nós pensamos que a maternidade deve ser uma escolha ou um acolhimento, porque uma gravidez pode não ter sido planejada, mas ela pode ser acolhida. Mas quando a gravidez é indesejada, quando uma mulher não quer e não pode levar diante uma gravidez, essa gravidez é o problema e o aborto é a solução para a vida dela. É aquilo que vai preservar a sua vida e o seu projeto de futuro.
A gente deveria sempre trabalhar maternidade e aborto entendendo a maternidade como escolha e não como destino biológico dos seres que podem gestar. Então porque se pode gestar é obrigatório gestar? Essa mesma exigência não existe para os homens, eles não são obrigados a paternidade.
Se uma mulher chega e diz para você: Eu descobri que tô grávida e eu vou abortar. A primeira pergunta que você faz é: Que isso? Você já pensou nisso? Ora, qual é a consequência de um abortamento bem feito e resultante de um desejo dessa mulher? É que ela amanhã poderá de novo engravidar, se ela quiser. Que ela não será obrigada a realizar um projeto de vida, para o qual ela naquele momento não está preparada. Agora, nunca se pergunta a uma mulher que diz eu tô grávida: Você pensou no que é dar à luz a um novo ser humano? O que isso significa? Porque a realização de um aborto é um momento, mas ter um filho ou uma filha é para o resto da vida.
Karla Bessa: Nós já temos seis países na América Latina que legalizaram ou descriminalizaram o aborto e já avançaram no debate da justiça reprodutiva. Não dá para o Brasil ficar de fora dessa grande onda verde que estamos criando na América Latina, que eu vejo como uma radicalização da própria noção de democracia. Pode falar mais sobre esse conceito de justiça reprodutiva?
Maria José Rosado Nunes: É um conceito que tem sido utilizado nos últimos anos e, que se não estou enganada, foi cunhado pela pelas mulheres negras americanas. Elas propõem como mais amplo do que o conceito com o qual trabalhamos, desde noventa nas reuniões internacionais da ONU, de direitos sexuais e de direitos reprodutivos. Justiça reprodutiva contém a proposição da consideração do contexto em que esses direitos podem ou não ser exercidos. Então, como os direitos sexuais e reprodutivos são atravessados pelas relações sociais de raça, de classe e que tornam a realização desse direito absolutamente desigual numa sociedade como a nossa. Então, o conceito de justiça reprodutiva vem cobrir essa falta de contextualização da possibilidade de realização desses direitos.
Então, isso é pensar a democracia e colocar as instituições de saúde pública para o acesso dessa grande maioria das pessoas, né? E a gente sabe também por pesquisas e por evidências que por mais que as pessoas digam: Ah, mas se libera, se descriminalizam se acaba incentivando para que as pessoas utilizem o aborto como uma prática anticoncepcional. A gente sabe que nos países onde aconteceu a descriminalização do aborto, a gente teve diminuição dos abortos, porque com a legalização ou descriminalização a gente vê um processo mais amplo da sociedade de tomar consciência também das outras tecnologias disponíveis para evitar a concepção, né? Porque a equipe que atende essa mulher depois também oferece um atendimento muito direto, no sentido de como praticar anticoncepção. A possibilidade de que ela não engravide novamente sem o desejar está colocada, porque ela tem uma assistência técnica para não engravidar.
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